Terça-feira, 7 de Setembro de 2010
Dizem que está assim porque um dia viu um demónio, e que desde então quase nem fala e raramente sorri, apenas aquele sorriso rançoso e estranho característico dos loucos e dos bêbados. Poucos sabem que a sua mulher e as duas filhas encontraram também o mesmo demónio numa curva da estrada, e que diariamente o visitam desde o acidente. Uns dias cheira a bagaço, outros a vinho de pacote e, a sua vida num dia bom, é parecida a dez quilos de bosta num saco de cinco.
Por vezes vê-se deambular só pela rua, com o seu casaco de cor indefinida e os seus sacos do supermercado às costas, onde guarda a sua vida. Com o olhar perdido, observa os acontecimentos diante dos seus olhos, ou melhor, dentro da sua cabeça.
Outras vezes gosta de ir ao centro comercial, e passeia pelos intermináveis corredores até algum comerciante chamar o segurança para o tirar dali. Não é bom para o negócio.
Quando as crianças passam a seu lado, ele olha para elas e parece emergir nos seus olhos a memória, a pena, a maldição... Não anseia uma vida melhor, nem sequer se lembra como era. Tantos são os dias sem sentido que lhe calharam viver, que já fazem parte da sua desolação.
Uma destas noites vi-o a correr, com a cara toda esmurrada. Ia pelo meio da rua, descalço e sujo, enquanto gritava algo imperceptível, apenas compreensível por quem sofre da mesma doença. Acho que corria em busca duma curva, negra como a sua alma, onde um dia alguém lhe tirou o único que tinha.
Não se voltou a ver desde então. Acho que está à procura da forma de pagar nos dias que lhe restam pelas vidas que perdeu.
Espero que consiga.
De létinhasa a 7 de Outubro de 2010 às 11:04
Alma Escura
...adorei estar neste canto
e
ler as tuas Palavras.
...que bem me senti.
ainda tenho muito para explorar.
parabéns!
xis létinha
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